As crianças de minha geração e classe social executavam trabalhos
domésticos como, por exemplo, “fazer a cama”. Isto significava: dobrar o
cobertor; esticar o lençol e forrar a cama com a colcha; guardar o travesseiro
e o pijama antes de lavar o rosto; escovar os dentes e sentar-se à mesa para o
café da manhã.
No correr do dia, antes ou depois de ir à escola, havia outras tarefas. Aliás,
minha mãe dizia: _trabalho de menino é pouco, mas quem dispensa é louco. Lá em
casa, cada um de nós, por seu turno, vigiara o leite ferver. Algumas vezes no
grande fogão a lenha; outras, amiúde, no fogão a gás. Existia uma panela alta
onde o leite era posto a ferver e tínhamos de mexê-lo com uma escumadeira para
que não criasse raspa no fundo. Inevitavelmente, em algum momento, o leite
levantava fervura e prontamente girávamos o botão do queimador para que não
entornasse – o que representaria sujeira e prejuízo. Era ainda o tempo da vida
sólida, conforme ensina Zygmunt Bauman.
Hoje uma enorme quantidade de sujeira é produzida a fim de que possamos
tomar um copo de leite pasteurizado, e batizado com uns não-sei-quantos-aditivos.
Sem contar os químicos na alimentação da vaca que já não vive só de comer capim.
De todo modo, a sujeira não forma mais binômio com prejuízo. Tornamo-nos
SUJISMUNDOS para que o serviço de coleta de lixo chegasse a ser a mais notável
indústria movida pelo consumo e lucro. Não há crise na indústria da remoção do
lixo. Desde os contratos sob suspeição até a criminosa condição insalubre de
trabalho diuturno dos garis, passando pelas subcontratações e termos aditivos duvidosos,
a coleta e destinação do lixo é o antro onde germina a corrupção com desvio dos
recursos públicos pelo incesto com a iniciativa livre. Nesse caso, melhor é o
adjetivo privada, que serve também para qualificar este tempo da “Vida
Líquida”.
O ponto central é a reflexão sobre a produção do lixo. Não é bem o “onde
vamos colocar tanto lixo?”; mas se podemos adotar uma atitude para não produzi-lo
com essa voracidade crescente. Porque estamos vendo a “fervura levantar” faz
tempo.
O mercado consegue, ano a ano encurtar a distância entre a loja e a
lixeira fazendo com que esse processo ocorra o mais velozmente possível.
Estamos aceitando, sem arrependimentos, a curta duração dos bens de consumo. Em
conformidade com os ditames do mercado, temos prontidão em nos livrar das coisas
que duram mais do que 1 ou 2 anos. Isso vale para relacionamento amoroso,
aparelho de celular, perfil no facebook, ritmo musical ou projeto de formação
acadêmica. Chegamos à sociedade do consumo sem mártires ou heróis. Vige o tempo
breve da celebridade – palavra de origem latina, mas que não se confunde com cerebrum.
No início do século, a Rita Lee cunhou uma letra líquida, gastronômica, para
consumo instantâneo. O refrão diz assim: Um dia depois / Não me vire as costas
/ Salvemos nós dois / Tudo vira bosta.... As fezes, como se sabe, são o lixo
mais original desde sempre. É o mais reciclável, pois de 80% a 90% é água. Diferentemente
de tudo o que metaforiza explicitamente, como o “programa do partido, o herói,
o dedo duro, a apólice de seguro, o passado e o futuro, a prostituta e o
deputado, a virtude e o pecado”, a merda é uma imposição fisiológica, natural e
legítima.
Toda a elaboração dos outros lixos poderia ser minimizada não houvesse o
incentivo ao consumo compulsivo, que a indústria do descartável pôs na linha de
produção planetária.
Tudo isso ferve num fogão à lenha. E não tem botão de DESLIGA. Ao
contrário. Quando a elite toma de volta as rédeas da nação, e impõe um governo
cuja marca paira ameaçadora como o império da “ordem” e do “progresso”, parece
que tudo vai passar, menos as dores e a corrupção. A “ordem” produz lixo
humano, que, nessa lógica, são todos os que estão fora do mercado, e não
conseguem consumir. O “progresso” do capital, quer pela exacerbação produtiva,
quer pelo rentismo, não pode ser alcançado sem produção de lixo, inclusive
industrial. O “progresso” depende de “coletores de lixo” cujas vidas físicas
são apenas mantidas, pois alguém tem que catar e dar destinação ao refugo.
Haverá quem diga que as crianças de antigamente eram exploradas por seus
pais, obrigadas a produzir muitos trabalhos como a varrição da casa e quintal,
torração dos grãos de café, alimentação dos animais de criação etc. Eu vivi aquele
tempo sem me sentir abusado ou alienado a respeito da produtividade que a
família esperava de mim. Mas, o processo civilizatório “resgatou”, como numa
nova abolição, os menores do trabalho. Tirou as crianças da produção para
inseri-las na roda do consumo. E, desde cedo, os jovens são convencidos a não
se apegarem muito às coisas. A respeitarem a transitoriedade necessária da
existência delas. A admitirem que o mercado não existe sem o nosso profundo
desapego. A obedecerem aos impulsos de consumo.
Publicado na Estilo OFF - setembro/2016