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domingo, 6 de setembro de 2015

Do cafezal ao cafezinho

Definitivamente a minha envelhescência é um processo em franco desenvolvimento. É um percurso de ida sem volta. Ainda que não queira, que tenha tomado a decisão de evitar os estigmas, sou obrigado a confessar: quase sempre estou a emoldurar meus comentários com o bordão “no meu tempo...” , “bons tempos” ou “antigamente é que era bom”. Geralmente para fazer uma crítica a este tempo presente, que parece escorrer rapidamente entre os dedos que em vão fazem barreiras para retê-lo.
A minha mãe, hoje aos 91 anos, sempre elogiou o tempo presente e fez torcida por ele. Ela ainda diz repetidamente que bom é o HOJE. Ela é amante da tecnologia. E costuma resumir tudo num exemplo magistral. Fala de como era difícil antigamente – lá pela década de 1930 – tomar um cafezinho. Era preciso fazer um cafezal: plantar, cuidar e esperar a planta crescer e dar frutos (vão já aí uns cinco ou seis anos de espera). A colheita manual era trabalhosa. Depois ainda tinha de secar, torrar e moer os grãos para se fazer o pó que dentro do coador é atravessado pela água quente produzindo no bule essa bebida mágica que é o café (veja que estou omitindo a trabalheira que ela dizia ter para providenciar o fogo a fim de ferver a água). Mas espere! Ainda não está pronto o café – ela nos surpreendia contando. Retomava a narrativa dizendo que era preciso plantar a cana, cuidar da cana, colher a cana, moer a cana, fazer a garapa da cana. Transformar aquele caldo doce em açúcar não é pouca coisa e dá um trabalhão. Neste ponto da conversa o interlocutor já tinha até desistido de tomar o café. Mas então a tia Maria – como a maioria dos parentes e agregados a chamam – dava o tiro de misericórdia no passado. _Hum, ainda falam que tempo bom era aquele. Nada! Tempo bom é este do fogão a gás, do açúcar a quilo e do “café de pacotinho”.

Concordo plenamente com a minha mãe: no que diz respeito às novas tecnologias, viver nos dias de hoje é muito mais confortável. Ela já defendia isso, mesmo sem conhecer o café solúvel, o expresso, o sachê de açúcar e as modernas cafeteiras que só faltam conversar com a gente.

De outro ponto, tenho insistido que há um inevitável choque ético de gerações pelo qual todos passamos à medida dos anos. Não é só biologia. Não é apenas o fato de que somos pó de café atravessados por incontáveis águas quentes, anos a fio, e que, neste mister, já fomos café fumegante, cheiroso e aprazível. Adaptamo-nos ao filtro de papel e a cafeteiras de modelos vários e passageiros. Mas, no campo moral, não temos dado conta de tanta inovação. Não é moralismo piegas, gente! Estou falando é de uma involução de costumes na qual parece que o certo virou errado e vice e versa. Mesmo pra mim, que não acredito em verdades absolutas e nem apregoo a crença dualista de que somente existem o BEM E O MAL, há uma crise grande de valores em curso. Parece que a sociedade perdeu não apenas o fio da meada, mas a consciência histórica (de outro jeito não compreendo como há vozes gritando pela volta do regime militar). É necessário retomar algumas referências que estão no passado. Referências não são absolutas, mas balizam. São coador de pó e ajudam a separar as substâncias próprias das impróprias. Funcionam como um sistema de vigilância que nos protege. Minha família é minha referência. Quando tenho dúvidas sobre o rumo a seguir, penso nela; mergulho no passado, e recordo, e reafirmo minhas origens. A rigor não há modernidade. Há o tempo presente que é apenas um istmo entre o passado e o futuro. Repito sempre pra mim: ainda bem que a gente morre.

Publicado na Estilo OFF - setembro/2015