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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Último desejo

Respeitável público,
Que me tolera há vinte anos,
Hoje vim aqui para mentir.
Vim dizer uma série grande de mentiras.


Vim falar pro mundo se danar.
É isso mesmo: se dana mundo velho,
Todos os homens, todos os bichos.
Se danem parentes, amigos e conhecidos.
Até quem eu amo: te dana, meu bem! Eu nem ligo.
Ao dinheiro: te dana.
À amizade: te dana.
Aos laços de família: te danem.
Quero mesmo é me deitar numa rede branca,
Ouvir na vitrolinha todos os discos de Noel com Araci de Almeida.
Tampar o rosto com Agatha Christie e dormir ao mormaço.

Vim aqui pra mentir.
Queria tanto...
Mas o desgraçado coração não deixa.
O desgraçado cativo coração nasceu assim:
Pássaro que não foge da gaiola aberta.
A submissão e a cegueira são a única felicidade.
Tem que ajudar.
Tem que vigiar.
Tem que se romper todo
Pra cuidar do mundo.
E chorar suas desgraças previsíveis,
Porque tem esse sentimento de fraternidade,
De se sentir e de gemer as dores de TODOS, seus irmãos.

Coração desgraçado
Que ama a pátria inexplicável,
A fé inabalável,
A herança gratuita da terra,
A casa feita a mão caiada de branco,
Os cachorros e as roseiras.
Tem o sangue que ata laços indesatáveis
E tem os amigos. Inseparáveis.
E, além de tudo, tem vocês que me ouvem.
Cada um de VOCÊS
Que pedem providência,
Que têm de ganhar dinheiro,
Que têm que pagar impostos, de cumprir horários, de estudar...
Mas é assim: em vez de liberdade, de solidão e de música
A alma tem que cuidar, vigiar e amar
De adular vocês e os amigos
E mentir (sempre que for preciso).

O único desabafo, faço agora (hoje é igual a 1950):
Rasgo meu peito
Pego meu coração
E digo: Te dana, coração, te dana!


Poema construído a partir de releitura da crônica "Talvez o último desejo" de Rachel de Queiroz  e recitado com maestria pela aluna Gisele na XIV Agrogincana do Colégio Agrícola de Itaperuna.