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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Acrobacia da consumação

Mesmo não sendo dado a superestimar o passado, tenho saudades de cambalhotas. Todas as crianças, até as que parecem desprovidas de certas habilidades físicas, dão cambalhotas; algumas são capazes de plantar bananeiras por tempos infindos. Quando era menino, e meio gordinho, já ensaiava aquelas cambalhotas, no ar, em que o corpo gira 360° fora do chão. Sabe?! Consegui essa proeza algumas poucas vezes e depois não pude mais, deve ser por causa de ter crescido. Então descobri que gente grande não dá cambalhotas e nem planta bananeiras. Não se trata apenas do impedimento criado pelo enferrujamento do corpo; acho que é porque a alma já não se dispõe mais a brincar. Há também a contribuição do medo: a gente pensa que pode quebrar o pescoço e se entrevar na cama para sempre ou morrer, que deve ser menos pior neste caso.
Ainda que não queiramos, há um dia para se pensar na morte – nossa e dos outros. A cultura ocidental nos ensinou a olhar a morte pelo lado de quem fica vivo. Na magistral obra de Machado de Assis, quando Brás Cubas diz que “não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”, o olhar é do defunto que continua “vivinho da silva” para escrever suas memórias. E a ironia machadiana é tanto mais humana quanto mais tenta nos fazer crer transcendental. De fato, nunca ouvimos ou lemos o pensamento de um morto.
Às vezes cotejamos a vida com a morte. E é por isso que podemos cristãmente desejar a morte para alguém que esteja sofrendo de uma doença incurável, ou que não tenha melhor expectativa de vida plena. Alguns mais abusados querem a morte de quem é mau: _Tomara que morra aquele bandido. Outros ainda desejam a própria morte acreditando que ela seja a solução de seus problemas. Também encontramos gente “disposta” a morrer por outra ou em lugar de outra, por uma causa ou em nome de uma crença.
Fato mesmo é que ninguém fica pra semente. Entretanto, desejamos todos ter uma morte “natural”. Convenhamos! Se nascemos para viver, a morte é algo não previsto, não projetado. Do ponto de vista da ciência, a morte deveria ser apenas e tão somente o fim do ciclo da vida. Como uma árvore que nasce, cresce, dá flores e frutos e, enfim, morre. De um modo ou de outro, ninguém deveria partir fora da hora, não é mesmo?! É muito triste e descabida a morte de uma criança; de um jovem; os pais enterrarem seus filhos; os natimortos. Todos deveriam viver, e bem, até a média de vida da sua comunidade. Isso parece justo. Se não morrêssemos, teríamos de reformar profundamente o sistema previdenciário, o tempo de escolaridade, o seguro de vida, o ingresso na maioridade, a idade indicada para certos programas de televisão, o ECA, o Estatuto do Idoso... essas coisas fugazes.
Mas insisto: se queremos viver muito e bem, é claro que desejamos bem morrer, pelo menos. Admitamos, ninguém quer apagar a lamparina; mas já que isso acaba ficando inadiável, que seja salutar. Então reaprendamos a dar cambalhotas e a plantar bananeiras, pois acho que morrer é isto: um mergulho, um ver o mundo de ponta-cabeça, ir brincar em outra dimensão.

domingo, 4 de outubro de 2009

Sem açúcar, mas com afeto!

Aos professores, fica o convite para que não descuidem de sua missão de educar, nem desanimem diante dos desafios... Pois, se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda.
Paulo Freire

Comi o livro “O clube do filme’ de David Gilmour. O autor, desesperado diante da desorientação e da infelicidade do filho, propõe ao garoto que saia da escola desde que aceite assistir, semanalmente, a três filmes escolhidos por ele, o pai. Não é um livro de pedagogia, mas um roteiro da descoberta da vida adulta por um jovem avesso ao ensino tradicional. Entre outras reflexões, detive-me a olhar historicamente o magistério, a fim de compreender por que caminhos os professores chegaram onde estão.
Na Idade Média, as famílias abastadas contratavam praeceptores para cuidarem da educação de seus filhos. Eram professores particulares, como chamamos hoje, que cuidavam de educar individualmente um jovem para viver no mundo. De lá pra cá, os professores tiveram que aprender a ensinar a grupos de alunos cada vez em maior número e mais diversificados. Portanto, penso que a grande mudança de realidade pela qual passou a profissão de professor vem a ser exatamente o aumento sistemático do número de alunos sob sua responsabilidade e a crescente diversificação do conhecimento. Não se pode dizer que se dá aula - e que se seja professor, portanto - numa turma de 20 ou mais alunos. O que se tem aí é uma palestra, no máximo. Em tempo, é bom lembrar, não existe professor a distância. O que a EAD faz é criar ambientes colaborativos de autoaprendizagem monitorados por carreiros chamados de monitores.
Quem tem mais de 40 anos se recorda de que havia um único professor por série escolar; alguns inclusive gostavam de acompanhar suas turmas pelos anos da educação fundamental. Esse negócio de “áreas do conhecimento” e “disciplinas” é uma invenção da modernidade. As especializações surgem para dar conta da complexidade do saber, mas fatalmente provocam uma fragmentação do conhecimento que agora tem a estanqueidade das “caixinhas” de matemática, de língua, de ciências naturais, humanas etc. Daí a busca desesperada pela interdisciplinaridade, pela multirreferencialidade, pelos temas transversais que, a rigor, só se conseguem juntar no papel e/ou no encontro no dia da culminância da pedagogia de projetos com ares de panacéia. Porque, convenhamos, não existem projetos multidisciplinares; só culminância.
É muito difícil falar de professores e professoras sem se falar de salário e remuneração, pois se corre o risco de ganhar a pecha de omisso. Entretanto, esse assunto foi - me perdoe - “caixinizado”, entende? De toda sorte, lá vai! Ainda que em metáfora. Já percebeu que de uns tempos pra cá os técnicos de futebol são insistentemente chamados de “professor”? Se não é deboche - e acho que não é - os “alunos” os chamam assim porque só têm um. A “turma” é orientada para um fim objetivo - ganhar o jogo e o campeonato. O “professor” é responsável pela escalação, por administrar as “peças de reposição” e responsabilizado pelos resultados. Nunca soube de um técnico de futebol apresentando atestado médico no RH do Clube. Ou fazendo greve por melhores condições de trabalho e salário - que às vezes atrasa. Sempre poderá apanhar da polícia, mas nada que seja deliberadamente. Ou deixando de comparecer aos treinos com ou sem justificativa. As “aulas” são planejadas. O “professor” sempre tem o que dizer na segunda-feira pela manhã. Também ensina, orienta, levanta o astral, anima... Dizem que os proventos de um técnico de futebol são bastante elevados em relação ao piso salarial de um professor e que o sucesso de sua carreira só depende dele e de seus resultados. Se o técnico não agrada aos jogadores e/ou aos torcedores, pode ser demitido.
Nessas últimas décadas, os professores conseguiram um tento: fazer a sociedade ter pena deles. A nossa autocomiseração, a lengalenga contra as avaliações externas, o piedoso discurso corporativista, os equívocos da prática pedagógica, a choradeira geral e irrestrita cunharam a “fama” de coitados. Entretanto, os resultados têm nos angariado as vaias sociais. É inadmissível que profissionais do magistério se autodenominem “sofressores” e chamem seus alunos de “aborrecentes”. É de mau gosto e revela covardia. Acredito no poder que palavras muitas vezes repetidas têm de estabelecer uma percepção equivocada da realidade.
Em verdade, o magistério nunca esteve diante de tantos e tão impacientes desafios. Os currículos tendem a uma extensa e extenuante colcha de retalhos. O remédio para todos os males, acredita-se, está em transformarem-se em conteúdos curriculares formais (caixinhas) a profilaxia das doenças sociais. Não estou reclamando. É uma constatação ululante de quem acompanha os rumos da educação escolar. Não deve ser motivo de protesto nosso que a sociedade clame, que os políticos façam projetos de lei, que os gestores forcem o esgarçamento da grade curricular. É porque se espera muito da Escola... e dos Professores. O pai de Jesse, Gilmour, desistiu da Escola; enxergou no cinema uma possibilidade de sucesso onde os professores fracassaram desgraçadamente. Mas... e os outros milhares de garotos e garotas que só têm a nós?! E, veja: podemos sim, porque somos professores. A Escola pode sim, porque segue - ainda - melhor que a sociedade.

Publicado na Revista CAE de outubro/2009.